O governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) planeja para as primeiras semanas após a posse um “revogaço” de portarias e decretos implantados ao longo da gestão de Jair Bolsonaro. O foco será reverter iniciativas que facilitaram o acesso a armas, dificultaram o combate ao desmatamento e impuseram sigilos a informações.
O cancelamento dessas medidas depende apenas da decisão do Executivo, sem necessidade de construção de uma maioria parlamentar. A lista exata de normas que serão derrubadas ou modificadas começará a ser decidida nesta semana, com o início dos trabalhos da equipe de transição coordenada pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. Cinquenta pessoas vão preparar uma radiografia do atual governo.
Armas
Uma das bandeiras da campanha de Lula, a redução do número de armas em circulação deve ser alcançada, entre outras formas, por meio da mudança completa das políticas de Bolsonaro.
“O compromisso expresso na campanha foi revogar decretos que facilitam o acesso a armas e munições”, afirma o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que integrou o grupo responsável por discutir propostas para a segurança pública.
O senador eleito Flávio Dino (PSB-MA), cotado para o Ministério da Justiça, classificou de “imprescindível” a revisão de regras no setor. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública diz que o controle da posse de armas foi “desmantelado”, fazendo com que civis e Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) tenham em mãos um arsenal superior ao de órgãos públicos. Ao todo, foram editados 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções e três instruções normativas.
Foi por meio de “canetadas”, por exemplo, que Bolsonaro abriu caminho aos CACs. A quantidade a que a categoria podia ter acesso passou de 16 armas, 40 mil projéteis e quatro quilos de pólvora para 60 armas, 180 mil cartuchos e 20 quilos de pólvora. Com as mudanças nas regras, o número de CACs cresceu de 117 mil em 2018 para mais de 673 mil até junho de 2022 — as armas registradas pelo grupo saltaram de 350 mil para mais de 1 milhão no período.
“Precisamos repensar o controle de munição. É preciso não apenas revogar, mas inovar para facilitar o rastreio de cartuchos e tornar obrigatória a marcação da munição vendida no país”, afirma o policial federal Roberto Uchôa, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Já o gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, defende que até mesmo as mudanças barradas pelo Supremo Tribunal federal (STF) precisam ser anuladas:
“A autorização para compras de armas sem a justificativa de necessidade, por exemplo, caiu com uma decisão do ministro Edson Fachin, mas precisa ser revogada para não causar confusão jurídica. Além disso, a decisão proíbe compras de fuzis por civis, mas não trata das armas já compradas, que estão em circulação. O novo governo vai precisar se debruçar sobre isso.”
Meio ambiente
Na área ambiental, o deputado federal Nilto Tatto (PT), um dos coordenadores do setor na campanha de Lula, elenca como prioridade a revogação de dois atos do governo Bolsonaro — um que reduziu o espaço da sociedade civil no Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama); e outro que prevê a anulação de multas ambientais avaliadas em mais de R$ 16 bilhões.
“Temos que trabalhar nisso agora no início do governo, pois esses atos emperram as outras pautas”, disse o parlamentar, que irá junto com Lula à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), no Egito.
Na conta do centro de pesquisa independente Instituto Talanoa e do projeto Política por Inteiro, existem 401 atos do Executivo emitidos entre 2019 e 2022 que precisam ser revistos “para a reconstituição da agenda climática e ambiental brasileira”. Estão também na lista, normas que versam sobre direitos indígenas e facilitação ao garimpo, dificultando a fiscalização.
Na opinião da pesquisadora Natalie Unterstell, presidente do Talanoa, apesar da urgência em tratar muitas questões, é preciso evitar a tomada de decisões importantes sem debate. A lista de assuntos frágeis inclui a NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), que é a proposta oficial do Brasil de redução de emissões de CO2.
— Até se pode ir lá e jogar um ato logo no primeiro dia colocando uma NDC nova, mas a gente entende que é indispensável para isso refazer o diálogo com a sociedade — diz a cientista
Normas infralegais
A maior parte das normas infralegais que precisam de revisão foram emitidas durante o primeiro ano e meio de pandemia da covid, quando o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles propunha que o governo aproveitasse a situação de instabilidade para seguir “passando a boiada” dos atos que flexibilizavam normas ambientais.
O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) produziu um levantamento dessas medidas no ano passado. Para Alessandra Cardoso, analista política da entidade, é preciso atuar fora do Ministério do Meio Ambiente também:
“Muitas “boiadas” passaram no Incra, na Funai, no Ministério da Economia…” A gente tem que ter um olhar amplo para o que foi esse desmonte e revertê-lo nos primeiros cem dias de governo.
“Sem revanchismo”
Também está nas pretensões de Lula revogar decretos que impuseram sigilos de cem anos a assuntos envolvendo o governo federal. O petista chegou a prometer rever essas iniciativas nos debates com Bolsonaro ao longo da campanha.
Ficaram sob sigilo, entre outros temas, a carteira de vacinação do presidente, o processo interno do Exército sobre a participação do então general Eduardo Pazuello em manifestação ao lado de Bolsonaro no Rio em maio de 2021, os crachás de acesso dos filhos de Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a investigação da Receita Federal contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Saúde e educação
Há pontos críticos ainda nas áreas de saúde e educação, que não devem passar incólumes ao “revogaço”. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) elabora um documento para entregar à equipe de transição com políticas que, na opinião da organização, devem ser revistas, como programas e portarias lançados pelo Ministério da Saúde sem discussão com gestores locais, contrariando o que prevê a legislação.
Um dos pontos é a Rede de Atenção Materno Infantil (RAMI), que substituiu a Rede Cegonha, criada em 2011 e reconhecida pelo sucesso em relação à atenção ao pré-natal, parto e puerpério. Entre as críticas, estava o fato de a política dar protagonismo a médicos obstetras sem prever atenção à criança por meio de pediatras.
“Tivemos desmontagens no campo da atenção básica, além da interrupção de programas na área de saúde da mulher. O ministério destruiu a relação de gestão tripartite com municípios e estados. Não é revogar por revanchismo, vamos ter que avaliar os atos. É para isso que serve a transição: identificar os principais problemas” afirma o ex-ministro da Saúde Arthur Chioro, que participou da construção do plano de governo de Lula.
Na educação, um dos principais alvos deve ser a Política Nacional de Alfabetização (PNA). Organizações como Todos pela Educação e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que devem ter representantes na equipe de transição, defendem a revogação.
A PNA colocou como central a aplicação do método fônico para alfabetizar crianças, modelo em que a aprendizagem começa das letras e sílabas até chegar às palavras. Na época em que foi lançada, a política foi criticada por gestores locais e estaduais por ter desconsiderado as iniciativas que vinham sendo desenvolvidas por estados e municípios a respeito do tema.
* O Sul
2022 Novembro 06
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